Bresaola, speck, guanciale, culatello, lonza… pouco a pouco, o brasileiro vem descobrindo as maravilhas da charcutaria artesanal – ou salumeria, como querem os italianos. Assim, nomes como esses começam a fazer parte do vocabulário não apenas dos mais entusiasmados por gastronomia. Afinal, nunca foi tão fácil encontrá-los em cardápios de restaurantes ou mesmo nas prateleiras de empórios e supermercados.
Com um nome que vem do francês (de chair, “carne”, e cuit, “cozida”), a charcutaria é um dos mais antigos métodos de preservação de alimentos da humanidade. Nos tempos em que não se podia contar com uma geladeira, encontravam-se meios como secagem, cura e defumação para manter as carnes consumíveis por mais tempo. E, ao passar dos séculos, países como Itália, Espanha e, claro, França, aprimoraram essas técnicas, mas com outra finalidade: o sabor.
“Assim como todas as grandes descobertas do ser humano – e as grandes receitas também -, a cura e os embutidos nasceram da necessidade”, conta o chef André Mifano. “Esses processos mudam a estrutura molecular do alimento, alterando a textura e o sabor drasticamente”.
Bresaola produzido no restaurante Donna, do chef André Mifano / Mário Rodrigues
Proprietário do restaurante Donna, nos Jardins, Mifano faz parte de um movimento de chefs que abraçaram o feitio desse tipo de produto em suas próprias cozinhas, e que hoje conta com nomes como Jefferson Rueda, d’A Casa do Porco, Tuca Mezzomo, do Charco, Ygor Lopes, do AE! Café, e Gerônimo Athuel, do Ocyá, que faz um trabalho minucioso de embutidos de peixes e frutos do mar.
Um dos pioneiros em produzir sua própria charcuteria, o chef francês Alain Poletto, do Bistrot de Paris – que aprendeu o ofício com sua família – é um entusiasta de carteirinha. “Estou sempre aprimorando minhas técnicas, minhas receitas. Faço meu próprio bacon há muitos anos e agora mesmo estou melhorando a receita. Fazer o próprio curado é algo que exige precisão, técnica, estudo constante e paciência”, completa. “Comecei a fazer embutido quando pouquíssima gente fazia, e cheguei a demorar seis anos para conseguir desenvolver uma receita específica de bresaola”, lembra Mifano.
O chef Jefferson Rueda, ao lado da chef Janaína Torres, lançou uma marca focada nos embutidos artesanais, a Porco Real, tamanho o sucesso e a demanda dos produtos que eram produzidos em baixa escala para os restaurantes do grupo A Casa do Porco.
“Meu primeiro emprego foi como açougueiro em São José do Rio Pardo, aos 14 anos, e foi a partir deste marco que comecei a preparar embutidos e nunca mais parei. Quando comecei a trabalhar nos restaurantes em São Paulo, no início da minha carreira, não encontrava a referência de sabor que eu cresci comendo, aquele sabor de ingredientes frescos. Já n’A Casa do Porco, trouxe muito mais embutidos, como o Guanciale, Lardo, Embutido de cabeça, Salsicha, Mortadela, etc. Com o crescimento da demanda, em 2021, vimos a necessidade de um novo local para produzir os nossos embutidos, surgindo a marca Porco Real. Hoje, o mercado de embutidos vem crescendo a cada dia, principalmente os pequenos produtores artesanais. As principais dificuldades ainda dizem respeito a requisitos legais, pois a mesma legislação aplicada para uma grande indústria é válida para o pequeno produtor artesanal. Além disso, os consumidores estão muito mais atentos às questões de rotulagem, sempre buscando entender cada ingrediente e processos utilizados na fabricação” conta Rueda.
O chef gaúcho Tuca Mezzomo, à frente do Charco, é um grande entusiasta dos curados e conta que, na época em que resolveu aprender a produzir sua própria charcutaria, não havia tantos cursos disponíveis no Brasil. Pesquisou e aprendeu muito do processo sozinho, mas sentia falta de mais conhecimento e decidiu passar uma temporada numa premiada fazenda de charcutaria no sul da Alemanha. Voltou cheio de ideias e colocou em prática tudo o que vivenciou, tanto que hoje, muitos anos depois, seu restaurante nos Jardins, em São Paulo, é famoso pelos embutidos produzidos na casa, ao ponto de sentir a necessidade de abrir um Empório no mesmo local apenas para que os clientes, que saiam ávidos por mais, tivessem a oportunidade de consumir em casa os produtos.
Tuca também toca num ponto importante quando o assunto é embutido: o tempo. “Cada um tem um tempo diferente; hoje pode ser nduja, outro dia um magret curado, ou pancetta. Paciência é a alma desse negócio.” Mas se antes as referências sobre charcutaria de alta qualidade eram escassas no Brasil, hoje o cenário é bem diferente. Basta uma pesquisa rápida para encontrar diversas escolas que ensinam desde a desossa do animal até a finalização do produto em si. Uma das primeiras foi a Curato, de Edson Navarro, que na última década recebeu cerca de 2 mil alunos. “A charcutaria vem na esteira do crescimento da busca por produtos artesanais, como acontece há alguns anos com o queijo e a cerveja”, teoriza ele.
Empório Charco, do chef Tuca Mezzomo, que produz seus próprios embutidos na premiada casa / Julia Rodrigues
Descendente de uma família de açougueiros italianos, Navarro fundou a Associação Paulista de Charcutaria Artesanal (APAC) há seis anos. Segundo ele, não há uma lei específica que contemple os pequenos e médios produtores – pelo menos, não uma lei na qual eles consigam se encaixar plenamente. Foi exatamente isso que aconteceu no passado com o queijo e a cerveja, que hoje têm um mercado mais desenvolvido. “Para se montar um negócio regularizado, é exigida uma estrutura enorme, pois a legislação foi pensada para a indústria, o que não é o nosso caso.”
Esses imbróglios legais foram o que motivou o italiano Sauro Scarabotta a encerrar sua produção. Um dos pioneiros quando o assunto é charcutaria de alta qualidade no Brasil, esteve por vinte anos à frente do restaurante Friccó, na Vila Mariana, e chegou a fundar a marca Sauro d’Itália Pane & Salumeria, que estampava itens como porchetta, prosciutto, mortadela, salame e guanciale.
“O Sauro foi muito generoso comigo”, conta Egon Jais, que há pouco mais de um ano inaugurou a Jais – Conservas e Charcutarias, na região do Morumbi, na capital paulista. Ele conta que atuava como fotógrafo publicitário quando resolveu se aventurar na sua própria marca, seis anos atrás. “Venho de uma família de cozinheiros; meu avô mantinha um defumador no jardim.” Foi nessa busca por especialização na área que ele conheceu o chef italiano. “Quando Sauro encerrou a produção, assumi os equipamentos dele e, com isso, veio o conhecimento. Nos demos muito bem, e ele foi me ensinando os processos.” Claro, além de seguir as técnicas, Egon afirma categoricamente que para ser um bom charcuteiro é preciso “feeling“. “Muitas vezes, só de pegar na peça, eu já sei que ela não está pronta. Tecnicamente, sim, mas é preciso um pouco mais; é aquele toque de cozinheiro que faz o prato ser incrível. O mesmo acontece com os curados”, comenta.
Os peixes e frutos do mar também têm vez na charcutaria
Se você ainda não ouviu o nome Gerônimo Athuel, sócio e chef do Ocyá, com endereços na Barra da Tijuca e no Leblon, garantimos, irá ouvir! Seu trabalho tem sido reconhecido em grandes premiações e, entre as boas receitas que faz com tudo o que vem do mar, está a produção artesanal de embutidos de peixes e frutos do mar.
Ocyá produz charcutaria do mar / Rodrigo Azevedo
“Resolvi começar a produzir os embutidos de peixes porque, como cozinheiro, acho que é um desafio conseguir desenvolver um produto com o qual não estava acostumado a trabalhar. É muito interessante você pesquisar, errar e ajustar até chegar no ponto certo. Além disso, fazer embutidos é uma forma de preservar o ingrediente e oferecê-lo em outro formato ao cliente. Tudo depende de como você faz, e o desafio é que nunca sabemos como ficará o resultado final, porque tudo interfere: temperatura, umidade, iluminação… é um desafio divertido e muito interessante!
Atualmente, o mercado evolui de forma muito rápida, com muitas informações, referências, estímulos e conteúdo que geram curiosidade. Então, o cliente está sempre procurando por uma experiência diferente, um lugar diferente, uma comida diferente. Acredito que, hoje, as pessoas estão mais abertas ao novo, com a mente mais aberta para provar coisas fora do corriqueiro, buscando algo que nunca provaram antes” completa Gerônimo que convida seus comensais a sairem do óbvio com linguiça ou mortadela de peixe, por exemplo.
No novíssimo restaurante de Paraty, A Casa das Meninas, as sócias Anna Paula Barreto e Maria Claudia Franca também levam seus visitantes a explorarem delícias das linhas terra e mar, servidas em forma de tábuas com curados, maturados, fermentados, defumados de porco, de boi e de peixes e frutos do mar.
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